Na próxima terça-feira, dia 3, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, o secretário estadual de Segurança Pública e os comandantes das polícias Civil e Militar do estado têm um compromisso: explicar ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, a megaoperação contra o Comando Vermelho que resultou na prisão de 113 suspeitos e na morte de cerca de 120 pessoas, segundo os dados mais recentes – das quais quatro eram policiais e ao menos outras quatro eram civis atingidos pelo tiroteio –, com “informações de maneira detalhada”. Moraes é o novo relator da ADPF das Favelas, que começou nas mãos de Edson Fachin e, com sua posse na presidência do STF, passou para Luís Roberto Barroso, que acaba de se aposentar. Por critérios de antiguidade, a ação caiu nas mãos de Moraes.
Repare-se que não está em jogo aqui alguma investigação criminal a respeito de possíveis irregularidades ou abusos que eventualmente tenham sido cometidos durante a operação policial. Moraes quer um relatório circunstanciado sobre a operação. Entre outros itens, ele deseja saber como a polícia avaliou qual o grau de força que seria necessário usar; quantos agentes participaram da operação e que armamento foi utilizado; os números de mortos, feridos e presos; se havia ambulância no local (e, se havia, a posição exata do veículo); o que foi ou será feito em termos de assistência às vítimas e familiares; se o princípio da proporcionalidade no uso da força foi respeitado; se escolas e postos de saúde foram usados como base para as forças de segurança (e, em caso positivo, o motivo da escolha).
“Esse absurdo, em que as autoridades constitucionalmente responsáveis pelas políticas de segurança pública precisam ter suas escolhas referendadas pelo Judiciário, é resultado de outra indecência jurídica: a ADPF das Favelas”
Se a lista de informações solicitadas por Moraes parece absurda ao leitor, é porque de fato ela constitui uma aberração. Toda a situação pode ser resumida na constatação de que Moraes (e, por extensão, o Supremo como um todo) está pretendendo agir como um avaliador (ou, pior ainda, como um validador) das escolhas feitas pelos responsáveis por planejar a operação. Um magistrado, agora, tem o poder de dizer se 2,5 mil agentes foram um número suficiente ou exagerado; se o uso de determinado armamento foi ou não adequado; se o horário escolhido para a operação foi o melhor; se os policiais deveriam ter escolhido outro lugar para montar suas bases de operação. E, caso esse magistrado resolva que as decisões das autoridades não foram as melhores (melhores na opinião do próprio magistrado, ressalte-se), essas autoridades poderão estar sujeitas a algum tipo de responsabilização.
Esse tipo de absurdo, em que as autoridades constitucionalmente responsáveis pelas políticas de segurança pública precisam ter suas escolhas referendadas pelo Judiciário, só está ocorrendo como resultado de outra indecência jurídica: a ADPF das Favelas, mesmo com seu resultado final tendo sido bem mais brando que o original. Em junho de 2020, Fachin, atendendo a pedido do PSB e de ONGs feito no ano anterior, concedeu uma liminar que praticamente inviabilizou novas operações policiais nos morros cariocas. Foram precisos cinco anos para que o STF consertasse o erro e levantasse as restrições da liminar, mas ainda assim não abriu mão de controlar as políticas públicas de segurança no Rio, impondo a elaboração de planos de redução da letalidade policial e de retomada das áreas dominadas pelas facções, e criando um grupo de trabalho para avaliar o cumprimento da decisão, coordenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
Assim como não cabe ao Judiciário tomar o lugar do Legislativo, escrevendo ou alterando leis, também não é função de tribunais e juízes usurpar o papel do Executivo e determinar políticas públicas. O Judiciário pode ser provocado a analisar violações de direitos constitucionais cometidos em operações policiais – por exemplo, as garantias relacionadas à inviolabilidade do lar –, mas emitir juízo de valor sobre detalhes de planejamento e execução, ou decidir o que pode ou não pode ser feito, é ativismo judicial puro e simples, que no Rio teve efeitos catastróficos, piorando demais uma situação que já era grave antes de 2020. Os criminosos tiveram, nestes cinco anos, a oportunidade de reforçar suas defesas contra a entrada de viaturas e incrementar seus arsenais. O Rio virou porto seguro para faccionados de outras regiões do Brasil – 33 dos 113 presos na terça-feira vinham de ouros estados; a maioria deles, da Bahia. Mesmo com a reversão da maioria das restrições impostas abusivamente por Fachin, o efeito desse período de leniência ainda será sentido por muito tempo. E, ainda que Fachin (ou qualquer outro ministro) tivesse uma intuição diametralmente oposta, com ideias tremendamente lúcidas e eficazes no combate às facções, ainda assim não seria função do Judiciário impô-las ao Executivo.
Alexandre de Moraes já foi secretário de Segurança Pública e ministro da Justiça, mas hoje ele não tem mais esses cargos, e não pode querer se comportar como se ainda os exercesse – ainda que tivesse as melhores ideias para derrotar o crime organizado, ressaltamos. O Judiciário pode e deve coibir irregularidades ou violações a direitos no curso de operações policiais, mas não é seu papel dizer a governadores e secretários, que segundo a Constituição são os responsáveis pela segurança pública, como devem fazer seu trabalho, impondo-lhes esta ou aquela política. A audiência de segunda-feira, por si só, e ainda que tenha sido convocada após uma provocação do Conselho Nacional de Direitos Humanos, mostra que o Judiciário normalizou uma mudança drástica e nociva no seu papel e na sua natureza; o que sair dessa sessão de “esclarecimentos” será um indicativo do quanto os ministros do STF, e Moraes em específico, continuarão dispostos a interferir em tarefas que não são suas.
Com informações Gazeta do Povo





