Ao Estadão, promotor do Gaeco do MP-SP Lincoln Gakiya diz que PCC já tem ‘soft power’ consolidado no Brasil. Há indícios de influência da facção sobre outras ONGs além da Pacto Social e Carcerário, diz ele
O promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) Lincoln Gakiya, de 57 anos, dedicou os últimos vinte anos de sua vida a combater a facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC. Titular da Promotoria de Justiça de Presidente Venceslau (SP) desde 1996, onde está presa parte da cúpula do PCC, Gakiya já foi alvo de várias ordens de execução por parte da facção. Ele e a família vivem sob pesada proteção policial 24 horas por dia, sete dias por semana.
Na segunda-feira (27), Gakiya ofereceu à Justiça denúncia contra 12 pessoas investigadas na operação Fake Scream, deflagrada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-SP. A investigação mirou a ONG Pacto Social & Carcerário de S.P, que, segundo a apuração, foi criada, financiada e prestava contas de suas atividades para o PCC. Como mostrou o Estadão, a presidente da ONG, Luciene Neves Ferreira, esteve em Brasília e participou de reuniões nos ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos, além do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Depois das investigações da Fake Scream, Gakiya diz não ter dúvidas sobre a existência do soft power das facções criminosas no Brasil. A expressão em inglês que designa a busca por influência e poder político sem o uso da violência.
Ao Estadão, Gakiya revela que há indícios de influência do PCC sobre outras ONGs e avalia que a facção já exerce influência sobre a política prisional. “(Os faccionados) estavam atingindo o objetivo deles, que era o de influenciar as políticas públicas nessa área do sistema carcerário”, diz. Segundo o promotor, não há até o momento indícios de que as autoridades que receberam a ONG em Brasília — inclusive no Ministério da Justiça – soubessem da ligação do grupo com o PCC. Os representantes do governo Lula foram “inocentes úteis”, diz Gakiya.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
A gente pode dizer que já existe um soft power do crime organizado?
Com certeza. Não tenho dúvida nenhuma a respeito disso. E acredito que outras ONGs… Numa entrevista a jornalistas sobre a Fake Scream, me perguntaram se estávamos querendo criminalizar as ONGs. Não estamos, de forma nenhuma. A gente apenas quer evitar que o crime organizado se utilize das ONGs para fazer denúncias infundadas, para atuar junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
E, assim como essa, outras (ONGs) vão eventualmente acabar aparecendo também. A gente não vai revelar nada, mas já temos conhecimento de pelo menos uma outra ONG que também estaria ligada ao PCC, nessas manifestações contra a opressão no sistema carcerário.
O diretor do documentário O Grito, que deu nome à operação Fake Scream, viajou com passagens pagas pelo PCC. É uma manifestação desse soft power?
Nós tivemos conhecimento desse fato (o pagamento das passagens) graças às investigações sobre a morte do (delator e empresário) Vinícius Gritzbach. Estamos acompanhando esse caso porque ele era um réu delator meu, inclusive, no Ministério Público. Quando se quebrou o sigilo do Kauê (do Amaral Coelho), que é aquele integrante do PCC, hoje foragido, que estava no aeroporto de Guarulhos como “olheiro”, para orientar os autores (dos disparos) sobre a saída do Gritzbach, se verificou que ele fez o pagamento para a viagem do diretor do documentário O Grito.
Fica comprovado que havia total interesse do PCC por trás da ONG, e de dar voz às suas manifestações. Utilizaram advogados (antes) e dessa vez usaram essa ONG com bastante sucesso. Chegou a ter um documentário (O Grito), com participação da ONG, e viagens de dirigentes da ONG a Brasília, onde tiveram contatos com deputados, com integrantes do Ministério da Justiça, da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais). Isso mostra que estavam atingindo o objetivo deles, que era o de influenciar as políticas públicas nessa área do sistema carcerário.
Na denúncia da operação Fake Scream, o senhor menciona um suposto “Plano ONG” do PCC, descoberto anteriormente. Do que se trata?
Durante a Operação Ethos (de novembro de 2016), coincidentemente conduzida por mim e pela Polícia Civil, nós miramos o chamado “Setor dos Gravatas” do PCC. Ali conseguimos a condenação de 39 advogados que serviam de mensageiros para o crime organizado, que não tinham nenhuma atuação jurídica. Esses advogados, já em 2016, cuidavam do “Setor da Saúde” do PCC. Eles ficavam a cargo de coordenar esse setor, que nada mais era do que fazer o contato com médicos e dentistas, entre outros, para atendimento particular de alguns presos.
No bojo das conversas que nós apreendemos, das conversas desses advogados, já se mencionava o “Projeto ONG”. A gente não sabia exatamente o que eles pretendiam com isso, mas imaginávamos que seria a criação de uma organização que pudesse defender os interesses da facção. Agora, com a operação Fake Scream, descobrimos que a ONG Pacto Social & Carcerário serve a essa finalidade.
Então você vai verificar lá, por exemplo, a manifestação de intenção da ONG de atuar no julgamento do (ex-guerrilheiro chileno) Maurício Norambuena na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); isso tudo prestando contas aos presos da PII (a Penitenciária II de Presidente Venceslau, em São Paulo). As manifestações eram gestadas de dentro para fora das unidades prisionais. Os próprios presos do PCC é que determinavam para a ONG a realização dessas manifestações.
As autoridades do CNJ e dos ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos que receberam a ONG Pacto Social e Carcerário tinham ciência do envolvimento dessa organização com o PCC? O que as investigações apontam até o momento?
Dentre as documentações que vão aparecer aí, nas investigações, não há só a figura de um deputado federal, mas tem também vereadores, para os quais esses supostos dirigentes da ONG trabalhavam. Geraldo Sales (vice-presidente) e Luciene (Ferreira Neves, a presidente) eram assessores parlamentares. Mas a gente não viu, na investigação, um envolvimento direto desses políticos aí com o PCC.
Na verdade, eu acredito que eles estavam pensando que era uma organização de defesa dos presos. Esses políticos sempre estiveram ligados a essas causas. Acho que eles, assim como a Senappen do Ministério da Justiça, acabaram por dar voz e apoio a essa ONG sem saber que por trás dela estava o PCC. Nós também viemos a saber disso quando apreendemos os cartões de memória (em setembro de 2021). Ali fica claro que a ONG presta contas ao PCC. A ONG atende às reivindicações do PCC e não tem nenhuma fonte de financiamento: as contas são pagas pelo PCC. Agora, não me parece que essas autoridades tinham conhecimento disso. Foram, vamos dizer, inocentes úteis.