Na última sexta-feira, 30, quando vários estados da Venezuela sofreram um apagão que deixou milhões de pessoas às escuras, nenhum jornalista dentro do território nacional fez o que faria qualquer profissional de um meio de comunicação em um país democrático: entrevistar um engenheiro elétrico para analisar os cortes de energia e a alegação do governo de Nicolás Maduro sobre um suposto ato de sabotagem, sobre o qual não apresentou provas. Dentro da Venezuela, os jornalistas cuidam de cada palavra que usam quando a pauta é política. Em conversas informais, asseguram que vivem numa ditadura, nua e crua.
O cerco aos jornalistas venezuelanos, e também aos profissionais estrangeiros que estão no país, é cada dia maior e asfixiante. Após a eleição presidencial de 28 de julho, os ataques à liberdade de expressão atingiram níveis nunca vistos em 25 anos de chavismo. De acordo com a ONG Foro Penal, 16 jornalistas foram presos quando cobriam atos relacionados ao pleito, principalmente protestos organizados pela oposição para denunciar como fraudulento o anúncio do Conselho Nacional Eleitoral de que Maduro derrotou o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia.
Pânico generalizado
As prisões criaram um clima de pânico generalizado no país, onde o simples ato de sair na rua para cobrir uma manifestação ou fazer uma entrevista é arriscado. A autocensura vem se impondo como nunca antes. Muitos jornalistas deixaram de assinar suas matérias, outros saíram de suas casas por temer serem detidos por forças de segurança do regime. Nos casos mais extremos, trabalhadores do que resta da mídia local pediram demissão e rumaram para o exílio.
“Estamos vivendo o que chamo de uma repressão cirúrgica. Nunca vimos tantos jornalistas presos e também expulsos do país. Nunca vimos um ataque tão feroz à imprensa”, afirma a jornalista Luz Mely Reyes, diretora e cofundadora do portal Efecto Cocuyo, um dos jornais digitais mais lidos pelos venezuelanos dentro (por meio de VPN ou alguma outra ferramenta que permita driblar os bloqueios oficiais) e fora da Venezuela.
Em 2023, aponta relatório da ONG Espaço Público, 28 pessoas foram presas por exercer seu direito à liberdade de expressão. O número representou um aumento de 65% em relação ao ano anterior. No entanto, desse total, apenas duas pessoas eram jornalistas. “Estas detenções são normalmente uma medida de retaliação a mensagens difundidas nas redes sociais ou a críticas ao governo publicadas por meio de aplicativos de mensagens instantâneas. Essa situação mantém o alerta sobre a crescente ameaça à privacidade devido à intervenção nas comunicações pessoais, registrada pela Missão de Apuração de Fatos das Nações Unidas”, diz o relatório.
Este ano, a situação dos jornalistas se deteriorou de maneira expressiva, afirma Carlos Correa, diretor da ONG:
“O agravamento da situação dos jornalistas foi gradual e piorou muito com a chegada de Maduro ao poder. O que estamos vendo hoje é um grau de violência inédito contra a imprensa”.
Entre 2013, ano em que Maduro foi eleito pela primeira vez, e 2022, afirma o Espaço Público, mais de 60 jornais fecharam na Venezuela por motivos econômicos, pressões estatais e falta de papel. No mesmo período, dez canais de TV estrangeiros que tinham correspondentes no país foram expulsos. Entre 2003 e 2022, diz o mesmo relatório da ONG venezuelana, 285 emissoras de rádio fecharam suas portas. Somados todos os dados, chega-se a um dado dramático em termos de liberdade de expressão e democracia: nos primeiros nove anos de Maduro no poder, 71% dos meios de comunicação venezuelanos sumiram do mapa.
Operação reduzida
Quando amplia-se o período de compilação de dados, a ONG aponta que 440 meios de comunicação foram fechados desde que Hugo Chávez (1999-2013) iniciou sua autoproclamada revolução bolivariana. Os grandes jornais venezuelanos foram comprados por empresários ligados ao chavismo, e os que ainda tentam fazer um jornalismo profissional e independente deixaram de circular em versão papel, reduziram drasticamente suas redações e sofrem uma perseguição diária, que transformou o trabalho jornalístico em algo arriscado.
O jornal El Carabobeño, por exemplo, passou de 400 funcionários para apenas 20.
“O chavismo teve, desde o primeiro dia, uma política pública de ataque à imprensa. Agora Maduro ataca aplicativos de mensagens como WhatsApp, porque milhões de pessoas passaram a se informar de maneiras alternativas”, diz Correa, que em conversas com jovens jornalistas deve explicar o que é uma entrevista coletiva, porque algo corriqueiro em países democráticos é uma raridade numa ditadura como a venezuelana.
Consultar uma fonte no governo é permitido apenas a jornalistas de meios alinhados com o Palácio Miraflores e, mesmo assim, o acesso é limitado. O jornalismo venezuelano enfrenta limitações tão grandes que emissoras de rádio como Unión Rádio, uma das mais importantes do país, reduziram o espaço dedicado a programas políticos e passaram a informar mais sobre esportes e fofocas de celebridades locais.
Medo é o sentimento predominante entre os jornalistas que ainda se atrevem a trabalhar dentro da Venezuela. A prisão de colegas conseguiu amedrontar a grande maioria dos profissionais de meios de comunicação locais, que temem ser os próximos detidos, em um processo que classificam de sequestro. Os jornalistas presos sofrem as mesmas arbitrariedades que os demais presos políticos: isolamento, impedimento de ter um advogado particular, audiências coletivas e acusação de terrorismo.
“Este é um governo autoritário e brutal, no qual existe a ausência total de direitos previstos numa democracia”, enfatiza Correa.
De acordo com o jornal El Nacional, nos últimos anos 374 jornalistas saíram do país. Luz Mely é uma dessas pessoas. A jornalista pensou em retornar a Caracas no período da eleição, mas decidiu seguir a recomendação dos que lhe disseram que o momento era de extrema cautela. Em menos de um ano, a diretora do Efecto Cocuyo teve seu passaporte venezuelano anulado duas vezes, sem explicação oficial alguma.
“Saí pela última vez de meu país em dezembro, porque a situação estava tensa. Fui ameaçada, perseguida. Minha família, com exceção de meu marido, continua lá”, conta Luz Mely, que define o atual momento como “totalitário, no qual praticamente não temos mais margem de ação”.
Resistência
Jornais digitais como Efecto Cocuyo, La Patilla, Tal Cual e El Pitazo ganharam força nos últimos dez anos apesar dos permanentes bloqueios oficiais. Segundo a ONG Vesinfiltro, “a campanha presidencial começou com 53 sites de notícias bloqueados. Durante a campanha eleitoral, 12 novos casos de bloqueios contra meios de comunicação foram registrados”.
Fonte: Exame