Por Gabriel Sestrem
Entre maio e junho, o Ministério da Cultura aprovou uma nova rodada de projetos que, juntos, poderão captar mais de R$ 700 milhões via Lei Rouanet até o final deste ano para financiar iniciativas culturais – que vão desde a publicação de livros até a organização de exposições artísticas e shows musicais.
Na prática, pela Lei Rouanet, o governo abre mão de parte dos impostos que receberia para que esses valores sejam direcionados a projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura. Trata-se de uma renúncia fiscal em que empresas podem doar até 4% de tributos devidos e abater esse valor do imposto de renda.
Mesmo não sendo uma transferência direta pelo governo, o repasse vem registrando valores recordes: em 2024 houve a maior captação da história da Lei Rouanet, com R$ 3,1 bilhões para projetos culturais. No primeiro semestre deste ano, os valores captados seguem em alta, com alta de mais de 30% em relação ao ano anterior.
A Gazeta do Povo analisou os últimos projetos aprovados pelo governo: algumas pedem quantias relativamente baixas e oferecem alto retorno social – desde 2019, a contrapartida social tornou-se obrigatória para todos os projetos aprovados na Lei Rouanet.
Esse é o caso da Associação Beneficente Renascer em Cristo, por exemplo, que captará R$ 2.227 para financiar a produção de mil brinquedos educativos e culturais por oficineiros locais de Serra (ES) a serem entregues para crianças em situação de vulnerabilidade social.
No outro extremo, há diversas propostas que chamam a atenção pela aparente desproporcionalidade das cifras envolvidas. Em um dos casos, um artista plástico maranhense obteve aprovação para captar R$ 600 mil para expor suas obras. Em outro, o carnavalesco Igor Carneiro foi autorizado a captar R$ 190 mil para um ciclo de seis palestras em uma escola de samba.
Veja a seguir oito projetos inusitados – que chamam a atenção pelos altos valores e/ou pela contrapartida social reduzida – aprovados pelo governo federal. Juntos, esses projetos poderão receber R$ 43 milhões via Lei Rouanet.
Oktoberfest Goiânia: R$ 12 milhões e apenas uma palestra como contrapartida social
A Oktoberfest Goiânia obteve aprovação de R$ 12,3 milhões para financiar o evento na capital de Goiás. A descrição do projeto menciona que o valor será destinado para custear “apresentações musicais regionais e artistas de grande porte”.
Apesar das cifras milionárias aprovadas, a organização responsável prevê como contrapartida social apenas uma palestra para alunos do ensino médio de escolas públicas. O tema da palestra trata justamente de como arrecadar recursos públicos para financiar projetos culturais.
R$ 4,1 milhões para a Marcha do Orgulho Trans
O Instituto Ssexbbox conseguiu aprovação para captar R$ 4,1 milhões para a 8ª Marcha do Orgulho Trans e a 4ª edição da Feira do Orgulho Trans – eventos que acontecerão em setembro na capital paulista.
O uso de recursos de uma lei de incentivo à cultura em um evento de orgulho transexual é possível porque os organizadores costumam apresentar projetos com foco em shows musicais e performances artísticas. Ou seja, apesar de serem atos políticos, também acabam sendo enquadrados como manifestações culturais, o que facilita a aprovação no escopo da Lei Rouanet.
R$ 400 mil para livro sobre empresária da moda de luxo
A editora Perkins conseguiu aprovar R$ 406 mil para financiar a publicação de um livro que aborda a moda brasileira contemporânea a partir da trajetória da empresária Carol Bassi. Apesar de ser financiado com recursos públicos, o livro retrata uma empresária de alto padrão da moda de luxo.
Segundo a editora, a obra vai evidenciar “o protagonismo feminino, a construção de identidade através do vestir e a atuação empreendedora na cultura”. O projeto prevê tiragem de 3.000 exemplares – custo de R$ 135 por unidade. Desses, 2.100 serão comercializados, e a contrapartida social é a doação de 900 unidades para bibliotecas públicas e instituições culturais.
15 milhões para festival sobre Alceu Valença
A ALS Produções e Eventos foi autorizada a captar nada menos que R$ 15 milhões via lei Rouanet para produzir um festival sobre o cantor de MPB Alceu Valença. “O Festival Alceu 8.0 é um evento majestoso que celebra os 80 anos de Alceu Valença, um dos mais renomados e icônicos artistas da música regional brasileira”, menciona a descrição do projeto.
Vale destacar que, embora shows musicais e outras apresentações artísticas possam ser financiados via renúncia fiscal, a Lei Rouanet não impede que as produtoras lucrem com a venda de ingressos.
Turnê da Hello Kitty a quase R$ 8 milhões
A produtora AF da Silva foi autorizada a captar R$ 7,8 milhões para a turnê brasileira do musical “Hello Kitty e seus melhores amigos”. O evento já foi apresentado em outros países, com ingressos que podem chegar a R$ 450.
“A proposta é levar alegria, fantasia e momentos de diversão ao público. O enredo valoriza a amizade e o convívio harmonioso entre as personagens, promovendo uma experiência lúdica e afetiva por meio das artes cênicas, música e da interação”, diz a produtora.
Meio milhão para financiar dez oficinas para artistas
A produtora cultural Thalia Peçanha de Brito obteve aprovação para captar R$ 512 mil para o “Circuito de Iluminação Cênica no Espírito Santo”, que prevê dez oficinas gratuitas de iluminação cênica e elétrica básica para artistas e interessados em cultura em Vitória (ES).
No ano passado, a mesma produtora já havia conseguido aprovar R$ 220 mil para promover duas turmas de moda sustentável exclusivas para pessoas negras, indígenas e LGBT.
Musical sobre Chico Buarque: R$ 3 milhões via Lei Rouanet e ingresso a até R$ 80
A produtora Sarau Cultura Brasileira obteve R$ 3 milhões em captação para viabilizar o musical “Nossa História com Chico Buarque”. Essa é a terceira temporada do evento, que iniciou em agosto de 2024. Atualmente o musical está em exibição no Sesc Pinheiros, em São Paulo, com ingressos que chegam a R$80.
R$ 200 mil para rodas de conversa sobre cultura afro
Rayane Rodrigues, idealizadora do projeto sociocultural Ònà Ẹwà, foi autorizada a captar R$ 200 mil via Lei Rouanet para financiar rodas de conversa que acontecem em ONGs, universidades públicas e museus.
As oficinas, segundo a descrição do projeto aprovado, são direcionadas a “mulheres pretas, gordas, periféricas e de Terreiro”. “Idealizado por uma mulher preta e neurodivergente, o projeto busca acolher, fortalecer identidades e enfrentar o racismo, a intolerância religiosa, a gordofobia e a misoginia”, diz a descrição do projeto.
Gazeta do Povo