A decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, blindando ministros do STF contra pedidos de impeachment, escancara — mais uma vez — o abismo entre a teoria da separação dos Poderes e a realidade brasileira. O que deveria ser um sistema de freios e contrapesos virou uma coreografia desengonçada onde um único ministro, armado de uma caneta que parece valer mais do que o Parlamento inteiro, define os limites da própria fiscalização. E o Congresso? Observa, reage timidamente, protesta em coletivas… e aceita.
Não se trata apenas de um ato jurídico discutível. Trata-se de um gesto político de alto impacto: um ministro legislando sobre a própria responsabilização, anulando preventivamente qualquer tentativa de controle externo e estabelecendo um precedente perigoso onde o juiz se declara imune ao julgamento. A oposição chamou isso de “ruptura institucional” — e não é exagero. A ruptura está na inversão de papéis: quem deveria ser julgado passa a determinar as regras do julgamento, quem deveria ser fiscalizado passa a impor limites aos fiscais.
Enquanto Luciano Zucco fala em “ditadura judicial” e Rogério Marinho ironiza a democracia “defendida sufocando a própria democracia”, a verdade incômoda é outra: a fragilidade não está apenas na decisão de Gilmar, mas na incapacidade histórica do Congresso de impedir que decisões monocráticas se transformem na norma de funcionamento da República. O Legislativo se acostumou a ser coadjuvante no próprio enredo constitucional. Reage, mas não reorganiza. Reclama, mas não confronta. Denuncia, mas não corrige.
A oposição anuncia PECs, projetos, ações coordenadas… mas todos sabemos que, salvo raríssimas exceções, o Congresso opera em ciclos de indignação que duram até a próxima pauta quente. O problema não é falta de instrumentos; é falta de coragem política para aplicá-los. Desde quando um único ministro deveria ter o poder de travar, sozinho, atos do Parlamento, decisões do Executivo e, agora, até mesmo a possibilidade de ser responsabilizado? Desde quando o Senado, constitucionalmente guardião dos julgamentos de ministros, aceita ser tutelado pelo próprio tribunal que deveria fiscalizar?
A monocracia judicial só prospera porque encontra, no outro lado da Praça dos Três Poderes, um Congresso resignado, fragmentado e, muitas vezes, conveniente. A oposição tenta reagir agora — e é importante que o faça —, mas a pergunta é inevitável: por que só depois que o STF passou a tocar nos nervos políticos mais sensíveis? Por que não quando a avalanche de decisões individuais começou a redesenhar a ordem institucional há anos?
Criar mandatos para ministros, limitar decisões monocráticas, reafirmar competências do Senado, responsabilizar magistrados — tudo isso é necessário. Mas nada disso prosperará se o Parlamento continuar agindo como refém de sua própria passividade. O STF avança onde o Congresso recua. Gilmar decide sozinho porque a maioria parlamentar ainda não decidiu nada.
O Brasil vive, hoje, uma hipertrofia do Judiciário alimentada por um atrofiamento voluntário do Legislativo. A decisão de Gilmar Mendes é um sintoma grave — mas a doença é a capitulação crônica do Congresso. E enquanto um único ministro seguir com poder para moldar o funcionamento de toda a República, a democracia brasileira continuará deformada pela ausência de um Poder Legislativo que honre o papel que a Constituição lhe atribuiu.
Em resumo: Gilmar ultrapassou limites. Mas foi o Congresso que abriu a porta.
**Poliglota é jornalista e Editor-chefe do Portal Opinião Brasília





