Algumas questões têm me chamado a atenção há alguns anos. Uma delas e sobre a qual já cansei de escrever são as chamadas “fake news” ou notícias falsas, tratadas como algo de extrema gravidade, equiparável aos mais hediondos delitos. Ocorre que inexiste em nosso direito, com uma pequena e especial exceção, norma penal que puna a mentira, a notícia falsa ou deturpada, ou a crítica a algo ou alguém.
Só a título de exemplo, não é crime desconfiar e nem criticar as urnas eletrônicas.
E tampouco tecer críticas a pessoas, mormente as notórias, como políticos e artistas, e a Instituições, mesmo que de modo mais contundente. Todas as pessoas possuem o direito de livremente se expressar e dizer o que pensam sobre uma coisa ou outra, algo ou alguém, inclusive sobre as urnas eletrônicas, membros de Instituições e políticos.
Aliás, toda pessoa pública ou notória, como os políticos, altos agentes públicos e artistas, vez que escolheram livremente essas funções ou profissões, têm reduzida sua intimidade, direito à preservação da imagem e até mesmo a proteção da honra, direitos que continuam a existir, mas são flexibilizados.
O que não pode ocorrer é ser ultrapassado o limite legal, que é bem delineado por normas penais e civis, punindo-se, dentre outras condutas, os crimes contra a honra, de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, o de ameaça, a incitação pública à prática de delito e a apologia ao crime ou ao criminoso.
São delitos previstos no Código Penal com seus elementos constitutivos (elementares) e podem ser aplicados quando o limite entre a liberdade de expressão e a prática de crime é ultrapassado, lembrando que todo direito, por mais importante que seja, não é absoluto.
Também não se faz possível, no período eleitoral ou durante a campanha eleitoral, divulgar fatos que sabem serem inverídicos em relação a partidos ou candidatos e que tenham o potencial de influenciar os eleitores. É o que diz o artigo 323 do Código Eleitoral:
“Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado: Pena – detenção de dois meses a um ano ou pagamento de 120 a 150 dias-multa”.
Referido tipo penal, conhecido como “Fake News Eleitoral”, somente é aplicável na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral e exige que o agente saiba que os fatos são inverídicos (dolo direto) e que sejam eles capazes de influir perante o eleitorado, não sendo elemento do tipo que tenham potencial para definir a eleição.
Cuida-se de norma que tem como bem jurídico protegido a lisura da eleição, que não pode ser afetada pela divulgação de fatos inverídicos acerca de partidos ou candidatos. A situação é bem mais complicada para os candidatos à eleição ou reeleição.
Para eles, divulgar notícia falsa pode ensejar a perda do mandato eletivo ou impedir o registro da candidatura se houver abuso de poder político ou econômico, notadamente com potencial de repercutir nas eleições ou no eleitorado. Também pode constituir ilícito civil se causar dano, material e/ou moral, a terceiro, ensejando o dever de indenizar (art. 927, do CC).
O que é muito difícil de definir é o que seja notícia falsa, já que há muitos fatos controvertidos e não falsos, muito embora a controvérsia possa ser minoritária. Só pode ser considerado como falso o fato que não possui nenhum fundamento fático, científico, político, econômico ou jurídico. Possuindo algum lastro, mesmo que pequeno, não é falso, apenas não é majoritariamente aceito.
Portanto, a punição por divulgação de notícia falsa pode ocorrer no âmbito extrapenal e, na esfera penal, naqueles casos já mencionados em que a conduta esteja tipificada em uma norma penal incriminadora.
URNAS ELETRÔNICAS
Quanto às urnas eletrônicas especificamente, tenho minha opinião, que foi externada em vários artigos e Lives em que participei. Estão na Rede e no Youtube para quem se interessar. Tudo fundamentado em argumentos fáticos, jurídicos e científicos sólidos, longe estando de serem falsos e minoritários, opinião protegida pela liberdade de manifestação do pensamento, direito fundamental e alicerce de todo estado democrático de direito, aliás, o primeiro a ser suprimido ou restringido em países totalitários.
Resumidamente, não existe crime específico de notícia falsa e qualquer conduta, para que seja passível de punição no âmbito penal, deve estar expressamente prevista em uma norma penal incriminadora, cuja vigência lhe seja anterior, observado o princípio da legalidade, direito fundamental contido no artigo 5º, inciso XXXIX, da Magna Carta.
Obviamente, por não existir punição penal para a divulgação de notícia falsa, exceto se constituir outra infração penal, não pode existir organização ou associação criminosa voltada à divulgação de fatos mentirosos, deturpados ou criados ficticiamente
Outra questão interessante e preocupante é que o tipo penal de abolição violenta do estado democrático, que deveria ser norma de aplicação extraordinária, como o era a Lei de Segurança Nacional, passou a ser algo usual, comum, podendo ser aplicado não raras vezes quando se quer processar uma pessoa por crime grave, que possa ser alvo de pedido de prisão preventiva e cuja condenação enseje pena de prisão. Diz a aludida norma penal:
Art. 359-L: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”.
Tal delito possui elementares próprias, dentre elas a existência de violência à pessoa ou grave ameaça, além da necessidade de a conduta possuir a potencialidade de abolir o Estado Democrático de Direito, o que ocorre quando, por meio destes modos de execução, seja impedido ou restringido o exercício de um dos Poderes da República.
Note-se, assim, que a conduta praticada deve ao menos ter o potencial de produzir o resultado pretendido, embora possa não ocorrer, uma vez que o verbo do tipo é “tentar abolir”. Com isso, malgrado não ocorra a abolição do Estado Democrático de Direito, o que dar-se-ia, em regra, com golpe de estado ou revolução e a imposição de um regime totalitário, é exigido pela norma que um dos Poderes da República seja impedido ou ao menos tenha restringido o regular exercício de suas atribuições ou jurisdição.
Além do mais, para a adequação típica, deve ter havido violência à pessoa ou grave ameaça e que a conduta tivesse o potencial de colocar em risco o Estado Democrático de Direito, sendo essa a intenção do agente.
CÓDIGO PENAL SOVIÉTICO
Isso me faz lembrar o Código Penal Soviético de 1926 (art. 6º), que possuía um tipo penal incriminador que permitia a punição de qualquer conduta que fosse considerada perigosa à estrutura do Estado Soviético. Isso implicava que o juiz poderia punir quem, em sua opinião, pudesse colocar em risco a ordem política da época.
Por isso, vige no Brasil e na imensa maioria dos países democráticos o princípio da reserva legal. Desse princípio decorre que a norma penal incriminadora deve ser taxativa, descrevendo perfeitamente a conduta punível e de modo a ser facilmente entendida por todas as pessoas. Cabe ao legislador, portanto, definir com clareza e precisão quais as condutas que ensejarão a imposição de uma sanção.
Da taxatividade da norma penal é extraído que o legislador deve criar tipos penais precisos, evitando, assim, os tipos penais “muito abertos”, em que o intérprete possa dar à norma a interpretação que lhe for conveniente, o que é a regra em países totalitários e foi amplamente empregado na Alemanha Nazista para punir os contrários ao sistema. Vejam o que ocorreu lá e na Revolução Soviética em que milhões de pessoas foram sumariamente julgadas e condenadas à pena de morte. E o ocorre atualmente em países como a Coréia do Norte, Venezuela, Cuba, Rússia, dentre outros em que o poder é mantido à força com o emprego equivocado do direito penal.
Evidente que o crime deve ser combatido com todo rigor, mas com a estrita observância do nosso sistema constitucional e legal, atendo-se ao princípio da legalidade no direito penal e ao devido processo legal no âmbito processual. Tais princípios fundamentais existem justamente para que não ocorra o arbítrio estatal e perseguições políticas/ideológicas, condutas inaceitáveis em um estado democrático de direito.
Quando o direito, mormente o penal, é empregado para perseguições pessoais ou políticas/ideológicas ocorre o que a doutrina denomina de “lawfare”, que, infelizmente, é comum em todo o mundo.
Hodiernamente, “lawfare” significa o emprego indevido da lei ou do sistema legal para o uso político ou para atingir um desafeto ou adversário.
E ela se torna especialmente grave quando são interpretadas normas penais de forma exacerbadamente elástica, de modo a alcançar a tudo e a todos, o que não pode ocorrer no direito penal em que vige o princípio da legalidade estrita, sendo vedada a analogia contra o réu (“in malam partem”), justamente para se evitar que isso ocorra.
O sistema legal existe para regular a vida social e não para impor a vontade de quem detém o poder político ou judicial, que, como todas as demais pessoas, devem obediência aos princípios e regras constitucionais e legais.
A lei é genérica e impessoal, atingindo a todos da mesma forma, dentro de procedimentos muitas vezes próprios para cada situação ou pessoa, mas de modo que seja aplicado adequadamente, a fim de que busque a principal finalidade do direito, que é a realização da justiça.
Quem abusa do seu poder político ou judicial comete diversas infrações previstas na legislação em geral, notadamente na de abuso de autoridade, sem contar que, a depender do cargo público exercido, pode ser alvo de impeachment pela prática de crime de responsabilidade.
Os exemplos atuais são muitos e, infelizmente, não raras vezes, pouco ou nada há para ser feito, posto que a legislação deixa de ser aplicada justamente porque seu emprego está nas mãos daqueles que se utilizam do “lawfare” para que se mantenham ou até mesmo se perpetuem no poder.
A aplicação do direito penal não pode ser banalizada. Ele é reservado para condutas que atentem contra bens jurídicos constitucionalmente protegidos, ou seja, vitais para a sobrevivência da sociedade. E sempre de forma a propiciar a mais ampla defesa e o contraditório para o acusado de uma infração penal, que deve ser julgado pelo juiz natural, isto é, de acordo com as regras de competência previstas na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, isso para preservar a imparcialidade do magistrado, impedindo-se tribunais de exceção, aqueles em que o magistrado é escolhido a dedo para julgar determinados casos e pessoas.
O direito traz os instrumentos para que o sistema constitucional e legal seja adequadamente aplicado, mas, a partir do momento em que seu emprego é desvirtuado por aqueles que deveriam a isso não permitir, cria-se um paradoxo, já que somente com a iniciativa dessas pessoas é que a lei será corretamente empregada, mas essas mesmas pessoas são as que impedem que isso ocorra.
Enfim, o que se espera é que o sistema constitucional seja observado para que nossa jovem democracia não adoeça e pereça.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.