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Marco Aurélio Mello: “STF só deve atuar na guarda da Constituição”

Para jurista, Corte vive momento de “extravagância” e considera um equívoco que julgue os envolvidos no 8 de janeiro de 2023. Ele considera que Judiciário não pode ocupar espaço do Legislativo — que quando não age, o faz por opção política

Com mais de três décadas no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro aposentado Marco Aurélio Mello é uma das figuras mais longevas da história da mais alta Corte brasileira. Nomeado em 1990 pelo então presidente Fernando Collor de Mello, atuou por 31 anos no STF, presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), integrou o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e notabilizou-se pela firme defesa do texto constitucional, da separação entre os Poderes e da liberdade individual. Desde sua aposentadoria, em 2021, acompanha o país como “cidadão comum”, como gosta de dizer, mas sem se afastar dos grandes debates jurídicos e institucionais do Brasil.

Em entrevista ao Correio, Marco Aurélio alerta que o Supremo tem ultrapassado os limites constitucionais, assumindo funções que caberiam ao Legislativo e comprometendo a imagem institucional da Justiça. Classifica como “extravagante” a postura recente da Corte em alguns temas e critica abertamente a ampliação de competências em julgamentos penais. Ele também falou sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, o papel das Forças Armadas, a tensão com os Estados Unidos e o desafio da pacificação nacional.

Ministro, em recentes declarações, o senhor disse que o Supremo vive um momento de “extravagância”. O que exatamente o senhor quis dizer? A Corte tem ultrapassado os limites constitucionais?

Extravagância porque a competência do Supremo é de direito estrito. Está delimitada de forma exaustiva na Constituição e não é competente para julgar cidadãos comuns. Por exemplo: eu mesmo, enquanto ministro, tinha a prerrogativa. Se me envolvesse num acidente com vítima, seria julgado no Supremo. Mas hoje, aposentado, o meu juiz natural é o da primeira instância. Veja um exemplo: o atual presidente da República, quando era ex-presidente, foi julgado na 13ª Vara Criminal de Curitiba. Ninguém questionou a competência. Mas, hoje, o Supremo se deu por competente para julgar os fatos de 8 de janeiro e, diante do número de envolvidos, alterou o regimento para que as turmas passassem a julgar processos criminais. Estive lá por 31 anos — nunca se julgou crime em turma. Se julgava sempre no plenário. São os tempos que, para mim, são estranhos.

O senhor também afirmou que o STF precisa “voltar ao seu devido lugar”. Poderia explicar qual seria esse lugar e qual seria o papel da Corte em uma democracia como a brasileira?

Cabe ao Supremo atuar apenas na guarda da Constituição. Quando o Congresso deixa de agir, ele está fazendo uma opção política, e isso precisa ser respeitado. Não cabe ao Supremo substituí-lo. Eu na bancada dizia que, quando o Supremo entra em seara que não é sua, lança um bumerangue que pode voltar à própria testa. Cabe observar a autocontenção. O Supremo pode, sim, atuar provisoriamente em casos de omissão legislativa, com mandado de injunção, mas isso é exceção. O único ramo com poder normativo é a Justiça do Trabalho e, ainda assim, em casos concretos.

Qual é o papel da Corte na nossa democracia?

De adotar uma postura rigorosa quanto à observância da Constituição, até mesmo porque o Supremo é o guardião da Constituição. Eu lhe pergunto: você, como cidadão, tem interesse em ser julgado na última instância e em instância única? Ou ser julgado em primeira instância, com a possibilidade de interpor recurso para um órgão revisor e, posteriormente, chegar mediante um recurso especial, em Brasília? Hoje, os colegas do Supremo perderam, praticamente, a cidadania, porque não conseguem sair às ruas sem serem criticados de forma cáustica. Sempre saí, nunca fui criticado e não sou até hoje. Hoje sou espectador. Cabe a cada qual saber a envergadura da cadeira que está ocupando.

A atuação do Supremo em temas ligados às redes sociais tem gerado debates. O senhor considera que as decisões relacionadas à regulação de conteúdos digitais configuram alguma censura?

Considero sim. A medula da nossa República é a liberdade de expressão. O artigo 220 da Constituição é muito claro: nem a lei pode criar embaraço à comunicação jornalística. Se alguém for prejudicado, pode acionar o autor ou o veículo judicialmente, mas não cabe controle prévio. Rede social é algo incontrolável, com velocidade altíssima. Não vejo com bons olhos qualquer tipo de inibição ou censura nesse campo.

Em algumas entrevistas, o senhor apontou que o Supremo não teria competência para julgar um ex-presidente da República em determinadas condições. Pode esclarecer?

A Constituição é exaustiva: o Supremo julga o presidente da República, o procurador-geral da República, os ministros de Estado — mas enquanto estão no exercício do cargo. Não julga ex-presidente, nem ex-ministro. A competência é para proteger o cargo, não o cidadão. Isso precisa ficar claro. Quando o Supremo assume essa competência ampliada, vai para a vitrine — e aí, inevitavelmente, vira alvo de críticas, o que contribui para o desgaste da instituição.

Diante dos episódios recentes de polarização e da ascensão de discursos extremistas, como o STF pode atuar na defesa da democracia sem ultrapassar os limites que o senhor mesmo já criticou?

Preservando a democracia dentro dos limites constitucionais. O mal não justifica outro mal. Paga-se um preço por se viver em um Estado Democrático de Direito, que é módico e está ao alcance de todos.

A Corte precisa se comunicar melhor com a sociedade?

Já se comunica. Foi na minha gestão como presidente que criamos a TV Justiça. Eu mesmo encaminhei o projeto ao Congresso e o então presidente Fernando Henrique sancionou a lei. No jargão futebolístico, bati o escanteio e cabeceei. Já há essa comunicação e as sessões são públicas.

Qual sua avaliação sobre o uso da estrutura do Judiciário para conter a propagação de fake news e desinformação em momentos de tensão política?

O Supremo tem que preservar a ordem jurídica. A mentira deve ser combatida com a verdade. O Judiciário não pode, por melhores que sejam as intenções, criar critérios de plantão. O Supremo deve preservar a ordem jurídica — e isso se faz dentro da Constituição. A mordaça é inconcebível.

A partir das investigações da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República, vieram à tona planos para um golpe de Estado no Brasil. O STF tem agido dentro do seu papel ou tem assumido protagonismo excessivo na resposta institucional a esses fatos?

Não consigo imaginar uma tentativa de golpe sem o apoio das Forças Armadas. Ficou claro que, desde o início, elas se mostraram apegadas ao figurino militar. Na minha visão, o Supremo tem se desgastado e a história é impiedosa. Quem está lá hoje, como eu estive um dia, está de forma passageira. A instituição é definitiva. Devemos lembrar que o exemplo vem de cima, cabendo ao STF dar esse exemplo institucional.

Como o senhor analisa a atuação do Supremo em relação aos ataques de 8 de janeiro de 2023? A Corte se fortaleceu com essa resposta ou saiu arranhada?

Pelo que ouço nas ruas, como cidadão comum — no mercado, na farmácia, na feira —, o desgaste é grande. Quando um ministro do Supremo não consegue sair de casa sem segurança reforçada, algo está errado. E o problema é que não há órgão acima do Supremo. Isso torna sua responsabilidade ainda maior.

O julgamento de militares, políticos e auxiliares diretos do ex-presidente Jair Bolsonaro tem dividido opiniões. Qual o risco de o STF ser visto como ator político nesses casos?

A única política concebível no âmbito do Supremo é a política institucional — para garantir a Constituição. O Supremo não pode estar engajado em políticas de governo. Se estiver, perde a imparcialidade.

O senhor sempre defendeu a contenção judicial. Acredita que o STF vive um momento de ativismo judicial? Isso se agravou com a omissão do Legislativo?

Sim. Já havia extravasamentos no passado. Por isso, eu sempre defendi a autocontenção. Ao meu ver, está havendo extravasamento. E tudo começa pela competência.

Como ministro que acompanhou decisões importantes ao longo de décadas, o senhor acredita que há hoje uma judicialização excessiva da política? A culpa é do Congresso ou do Supremo?

Não culpo ninguém. Mas cabe ao Supremo, quando realmente provocado com medida indevida, dizer que a medida é indevida, não é da sua competência. Não cabe substituir substituir ao Congresso.

Recentemente, o cientista político e professor Steven Levitsky, da Universidade de Harvard, afirmou que o Brasil seria mais democrático que os Estados Unidos. Como o senhor interpreta essa comparação? O STF ajuda a reforçar ou a fragilizar essa percepção?

Quando o Supremo ultrapassa certos limites, prejudica a percepção de Estado de Direito e de República. Outro dia, vi editoriais e todos criticando o Supremo. Não gosto de ver isso. Isso me entristece muito.

Como o senhor vê o bloqueio de entrada de ministros do STF nos Estados Unidos? A resposta do presidente Lula foi adequada?

Foi um ato de governo norte-americano que diria que foi impensável. E houve resposta também do nosso chefe de Estado. O presidente Lula respondeu, mas não devemos potencializar isso. É algo que foge da normalidade. Não podemos inverter e mandar os marines à América. É hora de temperança, é hora de predominância do bom senso e de se buscar o entendimento. Descompasso no campo internacional deve ser tratado pelo órgão próprio, que é o Itamaraty.

O senhor acredita que o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) esteja atrapalhando o país na negociação do tarifaço?

Eu sou contra Eduardo Bolsonaro ou qualquer outro cidadão ir para o exterior e lá começar a criticar o Brasil. Devemos discutir nossas mazelas internamente. Isso discrepa do que se aguarda, do princípio da razoabilidade. Mas não sejamos ingênuos: a família Bolsonaro não tem esse prestígio todo junto ao Donald Trump. O presidente dos EUA reagiu à reunião do Brics, no Rio de Janeiro, e até mesmo a essa tentativa de se cogitar uma moeda para comercialização entre os países integrantes, substituindo o dólar.

Para o senhor, qual é o papel do STF na preservação da imagem do Brasil? O senhor vê espaço para uma diplomacia judicial?

Não há. O Supremo só age mediante provocação. E sempre respeitando a soberania nacional. Tanto que, se precisamos de uma providência que deve ser praticada num país irmão, expedimos, via Ministério da Justiça, Itamaraty, pedindo a colaboração. Não podemos decidir em nome de outro país. Há de haver autonomia e que cada qual fique com o seu problema e que a roupa suja seja lavada em casa. E precisamos de paz, abandonar o antagonismo. Ainda não temos nas ruas as campanhas eleitorais. Vamos deixar o discurso de palanque para a época da campanha.

O senhor acredita que a anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro pode pacificar o país?

A anistia sempre é bem-vinda. É perdão, é virada de página. É algo de conteúdo humanitário, demonstra grandeza. É pensar grande por parte daqueles que deliberem a respeito e, para mim, é um ato soberano das duas casas do Congresso. Não fica sujeito, portanto, à censura de um outro poder. É ato privativo do Legislativo. É sinal de maturidade política.

O senhor acredita que o Brasil está precisando de mais serenidade?

Sim. É hora de temperança, de bom senso, de não colocar mais lenha na fogueira. Hora de cuidar das mazelas sociais que tanto nos envergonham. Tivemos um crescimento populacional imenso desde a década de 1970. O Estado precisa oferecer oportunidades, principalmente para os jovens, ou a criminalidade cresce. Hoje vemos o crescimento de milícias e tráfico se acasalando no Rio de Janeiro. Isso é inadmissível. Onde o Estado não atua, o crime ocupa espaço. Precisamos, urgentemente, restaurar a responsabilidade institucional. O Estado precisa voltar a assumir sua tarefa, prestando serviços essenciais à população.

CB Poder

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